sábado, 2 de setembro de 2017

Como boa moça...











                                           Mais uma vez ela se calou. Fechou os olhos levemente, engoliu em silêncio todos os sentimentos que lhe brotavam teimosamente nos olhos. Não deixou que a lágrima rolasse, denunciando a dor que lhe perpassava a alma. Caminhou a passos hesitantes, em direção ao nada. Sufocou o grito. Ela morreu mais uma vez. Sozinha, trancada dentro de si mesma, ela reviveu memórias. Lembrou de todas as vezes que tinha visto alguma mulher se calar. De todas as amigas que lhe confidenciavam seus silêncios lúgubres. Aquela dor tão conhecida, tão velha companheira, lhe atravessou a garganta. Não conseguia engolir a nódoa que lhe embargava a voz e lhe turvava os sentidos. Quantas vezes mais iria precisar sepultar os seus sentimentos? Ela pensava em tudo isso, enquanto inventariava suas lembranças e cicatrizes. 
                                         No outro dia, enquanto observava o sol se derramar sobre o mar, ela sentiu uma dor estranha. Uma dor forte, tal uma faca lhe atravessando o ventre. Percebeu que era um sentimento que tentava fugir do claustro em que havia sido mergulhado. Imediatamente, ela reergueu os muros, e o sufocou mais uma vez. Nem sempre era tão fácil... muitas vezes, ela lutava contra a ânsia de os libertar e o receio de se fazer ouvir. Tinha aprendido a calar. Tinha aprendido desde cedo que meninas educadas não discutem. Sabia silenciar os medos e sorrir com os lábios emudecidos pela dor. Sabia até mesmo camuflar seu olhar sob a maquiagem impermeável de mulher feliz. No alto de seus saltos, equilibrava emoções com maestria, como artista com seus malabares coloridos. Ela representava a boa moça como ninguém. 
                                    Mas, naquele dia, algo aconteceu. Sem que ela se desse conta, sem que ninguém percebesse, um pequeno pertuito causou um extravazamento inesperado. Sem que fosse programado, ela sorriu. Sem qualquer anúncio prévio, ela ergueu os olhos e suspirou. Ela viu o mundo refletido no cristal em que se abrigara. E, de repente, um manancial de sonhos transbordou entre seus dedos... Cansada de calar, pela primeira vez, ela existiu.




Foto: Simone Luz




Marcadores: , , , , , , , , ,

1 Comentários:

Às 3 de setembro de 2017 às 22:05 , Blogger Mafê Probst disse...

QUE TEXTO, amiga!
pesado, intenso. Cheio de segredos.
Me prendeu, desde o começo. E me roubou um riso, quando chegou ao final.

 

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial